Gestantes e puérperas negras estão morrendo mais por Covid-19 no Brasil

Duas pesquisas brasileiras recentes trouxeram à luz aspectos importantes sobre a mortalidade materna durante a pandemia de covid-19.

Na primeira pesquisa, publicada no periódico International Journal of Gynecology & Obstetrics (IJGO), os autores compararam a incidência de óbitos maternos no Brasil com a de outros países. Na segunda, publicada no periódico Clinical Infectious Diseases, os pesquisadores discutem o impacto desproporcional da mortalidade por covid-19 em mulheres brasileiras negras.

No começo da pandemia de covid-19, acreditava-se que o risco de complicações e de quadros graves em gestantes era o mesmo da população em geral. Entretanto, os números mais recentes vêm mostrando que essa população está em maior risco.

No Brasil, a mortalidade materna já era considerada elevada mesmo antes da pandemia. O Dr. Marcos Nakamura Pereira, presidente da Comissão de Mortalidade Materna da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) e autor de ambos os estudos, disse ao Medscape por e-mail: “Países da América Latina como Uruguai, Chile, Argentina e México têm mortalidade materna menor que a nossa.”

“A mortalidade materna no Brasil é elevada para um país com os recursos econômicos e com um sistema universal como tem o Brasil”, explicou o Dr. Marcos.

“A pandemia está expondo problemas crônicos do sistema de saúde que guardam relação com as razões pelas quais não observamos melhora substancial desse indicador há muitos anos.”

Comparação com outros países

Na publicação do IJGO, os pesquisadores realizaram uma busca em diversos bancos de dados, e reuniram publicações de seis países, três deles de alta renda (Estados Unidos, Reino Unido e França) e três de renda média (Brasil, México e Irã).

Quase 80% do total de óbitos maternos relatados nos estudos foram de mulheres brasileiras, embora, conforme observaram os autores, seja possível que os números estejam subestimados em todo o mundo.

Embora a população dos países de renda alta seja maior do que a dos países de renda média, a incidência de morte materna foi seis vezes maior no segundo grupo.

Apesar dos estudos revisados terem utilizado métodos de pesquisa e relato de dados diferentes, a avaliação de estudos com metodologias comparáveis mostrou resultados desfavoráveis para os países de média renda.

O percentual esperado de incremento nas mortes maternas para o ano de 2020 foi de 7,3% no Brasil, número superior ao de países como Irã, México e EUA.

O Dr. Alberto Trapani Júnior, presidente da Comissão de Assistência ao Abortamento, Parto e Puerpério da Febrasgo, que não participou dos estudos, disse ao Medscape que não há dúvidas de que a assistência ao pré-natal, parto e puerpério foi prejudicada pela pandemia, o que pode ter contribuído com o aumento da mortalidade materna.

“Consultas e exames cancelados. Atendimentos presenciais substituídos por uma telemedicina primária. O acompanhamento pré-natal foi adiado ou ficou incompleto. Na maioria dos locais o acompanhamento das gestantes de alto risco não parou, mas as pacientes não conseguiam chegar ao atendimento”, explicou o Dr. Alberto.

“Ainda não se pode afirmar se isso contribuiu significativamente para o aumento da mortalidade materna, mas é uma possibilidade”, disse o médico.

Impacto social

A outra pesquisa, que tem diversos autores em comum com a primeira, destacou a questão da maior mortalidade materna entre mulheres negras.

Os autores observaram que outros estudos já haviam reportado uma disparidade racial nos desfechos da covid-19 nos EUA, que poderia ser atribuída a fatores biológicos e socioeconômicos.

Na amostra estudada de mulheres brasileiras com covid-19, as gestantes e puérperas negras tinham idade, comorbidades e fatores de risco semelhantes ao das mulheres brancas. No entanto, elas eram mais sintomáticas à admissão, apresentando dispneia e queda de saturação de oxigênio com maior frequência.

A necessidade de cuidados intensivos também foi superior nas mulheres negras (27,6%) do que nas brancas (19,4%), assim como a evolução para a necessidade de ventilação mecânica (14,9% versus 7,3%, respectivamente). Ambas as comparações tiveram significância estatística.

Mulheres negras gestantes ou puérperas morreram com quase o dobro da frequência do que as mulheres brancas (17,0% versus 8,9%; P < 0,001).

“Em nossa amostra, fatores de risco clínicos frequentemente associados com um pior prognóstico de covid-19 não foram significativamente diferentes entre mulheres negras e brancas”, escreveram os autores.

“Logicamente, outras comorbidades podem contribuir para o pior desfecho de grávidas acometidas por covid-19, mas entre aquelas que pudemos analisar não houve diferença estatística significativa na incidência entre as negras comparadas às brancas”, destacou Dr. Marcos.

“O que estamos apontando é que a diferença para os achados deve ter uma razão mais social do que biológica”, explicou.

Perspectivas

O Dr. Alberto acredita que ainda é cedo para tirar conclusões.

“A diferença de metodologia utilizada nos poucos estudos já divulgados não permite afirmar se um eventual aumento da mortalidade materna seria consequência de complicações clínicas da covid-19 ou de eventos ligados à pandemia, como a crise econômica, a interrupção da rede de assistência pré-natal, a sobrecarga do sistema de saúde ou o retardo do diagnóstico e tratamento de complicações perinatais”, ponderou.

Para o Dr. Marcos, o impacto da pandemia na assistência ainda persiste, e poderá significar em um aumento substancial na mortalidade materna em 2020.

“O número de casos ainda continua elevado em alguns estados e agora se espalha pelo Centro-Oeste e pelo Sul do país”, disse.

“É fundamental garantir a continuidade do pré-natal, implantar testagem universal de gestantes no momento da internação, manter vigilância clínica em gestantes com covid-19 suspeita ou confirmada, ter protocolos bem estabelecidos para a condução dos casos, e valorizar os quadros suspeitos no puerpério”, sugeriu o Dr. Marcos.

“Necessitamos de gestores sérios, que coloquem a saúde e a ciência acima dos interesses políticos”, disse o Dr. Alberto.

“Não podemos também focar apenas na pandemia e adiar atendimentos, diagnósticos e tratamentos de todas as outras situações”, concluiu.

— Por Medscape.

Deixe um comentário